InícioDebate FocaKevin Carter e a polêmica foto

Kevin Carter e a polêmica foto

pulitzer-1994

Acho que essa foto estampou quase todas as campanhas de combate à fome que eu já vi. Também deve ter passeado por entre as páginas de quase todas as minhas apostilas de Geografia do Ensino Fundamental. E vou arriscar dizendo que, realmente, a fotografia se fez a expressão maior da fome na África. Perdão: Kevin Carter a fez.

O fotógrafo de origem sul-africana viajou ao Sudão para testemunhar o que mais uma guerra civil tinha deixado (sim, mais uma, porque o país vive em guerra há décadas). Kevin e mais alguns amigos fotógrafos, que formavam o Bang Bang Club, aprontaram seus equipamentos e foram à procura dos melhores cliques para montar uma foto-reportagem. Em uma de suas buscas, Carter se deparou com o que seria o alto (e o baixo) de sua carreira.

Era uma criancinha. Arrastava-se ao chão, parecia agonizar. Sua aparência esquelética era tão gritante quanto sua fome. Logo atrás, um abutre particularmente feio e com cara de vou-te-comer-já-já assistia discreto à criança se arrastar. E, observando a cena, estava Kevin. Aguardou por vários minutos para ver se a ave abria as asas (quem sabe a foto ficaria mais chocante?). Desistiu. Fotografou e foi-se.

A foto ganhou destaque na edição de março de 1993 do The New York Times e foi a responsável pela ascensão de Carter como fotógrafo. Em 1994, Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia.

 (Pra você ter uma noção do quanto a foto foi prestigiada, o Pulitzer é a maior premiação do ramo, uma espécie de Oscar da Fotografia. Né coisa fraca não.)

Kevin Carter
Kevin Carter

 Mas a história não foi tão florida assim, cheia de altos, prêmios, confetes e “vivas!”. A foto foi também o grande baixo de Kevin. Assim como você deve ter se perguntado quando conheceu a história do registro, muitos também se perguntaram por que Kevin Carter não ajudou o garoto. Por que, sei lá, ele não largou a câmera e o levou a um abrigo? Por que ele se preocupou mais em localizar o melhor ângulo do que em salvar a criança? Kevin foi deveras criticado quanto à sua atitude. Criticado o bastante, talvez, para que meses após ter sido premiado ele se suicidasse. Em junho de 1994, o fotógrafo morreu. Levou seu carro a um local propositalmente escolhido e deixou que uma mangueira levasse monóxido de carbono do escapamento ao interior do veículo.

Em seu bilhete de suicídio estava o seguinte: “Estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para o aluguel, sem dinheiro para a manutenção dos filhos, para as dívidas. Dinheiro! Estou atormentado pelas lembranças vividas dos assassinatos e dos cadáveres da ira e da dor… Das crianças feridas e que morrem de fome, dos loucos do gatilho leve, com frequência da polícia, dos assassinos e verdugos.” Não há nenhuma menção à possível morte do garoto, mas a mídia da época aproveitou o fato para dar uma conotação mais dramática à sua morte.

O que aconteceu com a criança da foto?

Tanto quanto sobre sua postura, Kevin também foi perguntado sobre o destino da criança. É de se imaginar o que aconteceu minutos depois do clique. Baseando-se pela aparência do garotinho e pelo olhar vou-te-comer-já-já do abutre, dá pra arriscar que o fim foi de morte para a criança. Mas não, ela não morreu. Sobreviveu à ave e à fome e ainda viveu alguns anos. Segundo seus pais, Kong Nyong morreu há 5 anos, vencido por uma alta febre. Olha aí o pai do menino:

Pai de Kong Nyong, a criança da foto.
Pai de Kong Nyong, a criança da foto.

Olhe bem, eu não sei o que o fotógrafo realmente sentiu após fazer o clique. Ninguém sabe. Mas todas as fontes que consultei para estudar o caso afirmaram que Kevin ficou depressivo, arrependido, perdido. Imagino… Deve ter se sentido tão vazio quanto a barriga da criancinha. O arrependimento de não ter sido a salvação da criança certamente contribui para sua queda, mas não só eles. Problemas familiares e financeiros podem ter lhe motivado a cometer o suicídio. Enfim, é muito difícil afirmar ao certo.

Lições que devemos tirar do caso

Robert Capa, fotógrafo húngaro e testemunha de muitas guerras, é dono da seguinte frase: “Se sua foto não está boa o suficiente, você não está perto o suficiente”. Ele não estava se referindo, acredito, à distância física apenas, mas sim ao quão estreita pode ser a relação entre o fotógrafo e o caso. Kevin se envolveu tanto com a criancinha e o abutre que sua foto ganhou prestígio, aplausos e “vivas!”.

Ok, foi um belo de um clique, meu senhor. A foto foi boa, Robert Capa. Mas me responda: esse envolvimento todo e muito é necessário? É conveniente? Tenho de me vestir de profissional apenas, só porque estou sendo pago pra fazer o que sei fazer? Até onde posso ir, enquanto fotógrafo ou fotojornalista? Até quantos minutos posso esperar o abutre abrir as asas? Essas são algumas questões que ainda permanecem em debate e devem estar presentes à todo momento em nossa mente se quisermos fazer um jornalismo sério e autêntico.

Uma história que virou filme

Um longa sobre a carreira dos quatro fotógrafos do Bang Bang Club e sua ida ao Sudão foi lançado em 2010. O filme tem o mesmo nome do grupo e é uma adaptação do livro autobiográfico The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War. Assista o trailer clicando aqui.

Por Natália Noronha.

Leia também:

–  Casa dos Focas entrevista Epitácio Pessoa, fotojornalista do Jornal “O Estado de São Paulo”

– Quais são os jornais de maior circulação no Brasil?

– Jornalismo Investigativo é redundância?


Perfil de Natália Noronha

Vivo passeando entre música, jornalismo e poesia, e vez em quando encontro um ponto de intersecção entre os três. É aí que eu me realizo. Tenho fascínio pelo novo – a mesmice me é agoniante – e tento aplica-lo no que faço. Novas melodias, novas formas de poema, novas maneiras de se fazer notícia e de escrever. Sou Natália Noronha, estudante de jornalismo na UFRN, administradora do Blog Fala, foca!, quase-cantora e quase-poeta… Até sair do quase tenho muito que aprender.

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3 COMENTÁRIOS

  1. Creio que ele tenha sim, ajudado aquela criança, mas diferente de muitos ele não quis se engrandecer… Acredito que suas palavras da carta, retrata a impotência de alguém que esteve próximo aquela realidade e que não pode fazer muito por aqueles que sofria. Ele fotografou aquilo certamente para concientizar o mundo, do quanto somos egoístas e indiferentes aos nossos semelhantes. Ele fala do dinheiro indignado, pois por causa deste maldito, nos tornamos MONSTROS IMPIEDOSOS E ASSASSINOS INESCRUPULOSOS. Vocês não tem sensibilidade… É tudo uma questão de percepção. Julgaram a ” suposta” atitude de Kevin e nenhum de vocês sequer pensaram em como podiam se unir e abraçar essa causa, ao invés disso sensacionalizam por causa da desgraça do poder, glamour, reconhecimento e dinheiro!

  2. Carter não ajudou a criança, não precisava, no braço da criança mostra uma pulseira branca que mostra que aquela criança já era assistida pela ONU, estava próxima a uma zona de distribuição de alimentos. A criança morreu adulta em 2006 por conta de uma febre muito alta.
    Kevin não pode lidar com a pressão de uma imprensa que queria transformar um heroi em vilão

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